quarta-feira, 6 de julho de 2011

O cara caminhava

O cara caminhava, fodido, sem grana, fedido, podre por dentro e por fora. A calçada era suja e esburacada, mas não fazia diferença, ele não enxergava direito mesmo. Há muito os olhos tinham ganhado a cor branca leitosa da catarata. Tropeçou. Caiu de boca no chão, mas também não se importou muito, estava acostumado a cair. Quando se está constantemente bêbado, por anos suficientes, o chão torna-se naturalmente um dos seus melhores amigos. Sentiu o corte feito na testa sem importar-se muito. Levantou-se limpando as mãos sujas de sangue nas calças e recomeçou a caminhar. Sentiu uma coisa meio dura, meio farelenta na boca, mordeu e sentiu o gosto. Tinha gosto de almoço velho, estragado. Cuspiu na mão e olhou para o objeto intruso. – Porra! Mais um dente! – Menos um, restavam onze: um terço. Ainda bem que não precisava muito dos dentes, a comida que comia era estragada, pútrida mesmo, restos achados aqui e ali. Comia tudo que achasse pela rua. Estava no chão? Comia. Quando pedia comida e por acaso recebia algo, comia ali mesmo, na hora, os dedos sôfregos e tremendo, emporcalhando ainda mais aquela comida rançosa e velha. Dormia debaixo de montes de lixo espalhados pelo centro da cidade, que ir para a periferia era coisa de pé-rapado. Tomava banho... não tomava. Os cabelos ensebados de forma tão constante pareciam encerados, grandes chumaços fedorentos naquela cabeça que lembrava a decomposição de tecidos vivos. Estavam infestados. E não apenas de piolhos, havia tudo que você pode imaginar ali. De vez em quando até encontrava um grande o suficiente para não ficar preso no vão dos dentes. E caminhava. O dia todo caminhava. Caminhava sempre à frente do chorume de suas memórias já ressecadas retorcidas, enfrentando à frente um futuro desesperador, solitário, abandonado. Andava até cair de exaustão. O corpo subnutrido, arqueado sob o peso da miséria. E caia de novo. E levantava-se de novo. E caminhava, sempre em frente. E de repente já não andava, flutuava. Via seu corpo de cima, bem de pertinho, e lá embaixo, muito pequenina, a cidade. Todos seus esgotos exalando fumos e vapores nocivos, aquela névoa espessa encobrindo a cidade. Suas agruras também estavam pequeninas, rolando soltas para todos os lados lá embaixo. Flutuava e rolava no ar. O lampejo de um sorriso fazendo um pequeno músculo tremer no canto da boca de forma meio maníaca. No ápice do último giro, ao olhar para baixo, viu as ruas maiores, cada vez maiores, aproximando-se com aceleração exponencial. Rápido. Mais rápido. BAM! Chão. Fim do êxtase da fuga. O barato tava caro. Ele caminhava, sonhava, chorava, e chutava a vida, a desgraça, a miséria, e comia a terra, e a larva, e a podridão cobrindo tudo, por todas as partes, por cima e por baixo. Ele caminhava, e suas unhas, inflamadas e negras, caiam. Pus. Sangue sujo, escuro, semicoagulado. Dedos gangrenados desprendendo-se de seus pés. Apodrecendo dentro de suas botas. Os pés cansados, lentamente desgastando as articulações. Osso com osso. Rangendo. Arrastava-se. Sobre seus cotovelos manchados. Feridas abertas deixando um rastro escuro atrás dele. Os pés e parte das pernas já esquecidos, deixados para trás há muito tempo. Longamente rasteja. Milhas, anos e décadas. E no fim de tudo, lá quando a escuridão está próxima, as memórias esquecidas e nada mais pode ser feito. Irrecuperavelmente no fim. Sem volta. Frio. Solitário frio. Por todo seu redor, abraçando-o. Tudo que resta é sua cabeça. Lá no fim. Couro cabeludo desmanchando-se, pendurado em grandes nacos sobre o rosto, as orelhas. Pele desmanchando-se, orelhas derretendo em meio a vermes. Seu último pensamento, muito tempo depois de seu último suspiro, é que chegou o mais longe que pôde. O mais perto. O cérebro desmanchando-se, rolando sobre a calçada, nega-se ser devorado pela imundície ao seu redor. Mesmo sem boca, retorce-se, dobra-se por sobre si mesmo, se engole.

Agradecimento a Henrique Mancini pela inspiração.

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